ECONOMIA

Políticas monetária e fiscal precisam dialogar, diz procuradora

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No próximo dia 22, a Comissão Mista de Orçamento deve votar o projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024. No dia seguinte, a proposta deverá ser encaminhada à Mesa do Congresso Nacional. A LDO estabelece os preceitos para a elaboração do Orçamento Geral da União e traz indicadores importantes, como a meta de déficit fiscal – resultado entre o que o governo prevê arrecadar com tributos e outros meios e aquilo que precisa gastar para o funcionamento do Estado e investimentos – o que implica as possibilidades de crescimento econômico. 

No final de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva admitiu que o governo “dificilmente” cumprirá a meta fiscal de déficit zero em 2024. Desde então, repercute polêmica em torno das despesas públicas. 

Para Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (SP), a polêmica distorce a visão do problema. “É preciso que façamos a revisão das regras fiscais brasileiras a partir desse prisma ampliado entre receitas, despesas e dívida públicas”, salienta. 

Para Graziane, o imbróglio fiscalista faz cortina de fumaça para os problemas distributivos. Segundo ela, “o Brasil tem um orçamento de castas” e “defender austeridade e apenas conter despesa primária é manter a riqueza subtributada segura e extremamente bem remunerada na dívida pública.” 

Confira os principais trechos de entrevista por escrito que a acadêmica e procuradora concedeu à Agência Brasil

Agência Brasil: Que diferença faz se tivermos em 2024 as contas públicas com déficit zero ou se tivermos um déficit de 0,5%?
Élida Graziane: O nível do déficit primário é escolha política que, a rigor, não traz consigo uma repercussão necessariamente negativa para a sustentabilidade intertemporal da dívida pública. É preciso desmistificar essa falsa correlação que tem sido apregoada no senso comum de que seria fiscalmente irresponsável a hipótese de que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) venha a adotar uma trajetória mais suave de gestão do déficit primário, o qual, aliás, tem sido registrado pelo governo federal há quase uma década.  

É preciso esclarecer a sociedade brasileira acerca do fato de que a sustentabilidade da dívida pública é uma equação que leva em consideração tanto o nível consolidado da dívida (em termos de dívida bruta do governo geral) quanto o nível de riqueza e produção do país (medido pelo Produto Interno Bruto – PIB). Se o país cresce pouco ou não cresce, isso é tão ou mais grave para a avaliação intertemporal da dívida quanto o próprio volume global de receitas e despesas governamentais.

Agência Brasil: Na LDO, que ainda não foi votada, e no próprio orçamento para o ano que vem, o que mais preocupa a senhora?
Élida Graziane: Há um grande conflito distributivo no debate das regras fiscais brasileiras. É preciso evidenciar a quem aproveita essa espessa cortina de fumaça que interdita o planejamento de médio prazo do país.
 

Impor constrangimento fiscal de curto prazo aproveita tanto aos agentes que precificam risco da dívida e são remunerados com juros mais altos, quanto aos parlamentares que barganham maior espaço orçamentário para suas emendas paroquiais.

Ainda que sejam conduzidos por motivos e finalidades distintos, ambos os grupos frustram qualitativamente a agenda republicana do Plano Plurianual (PPA), porque lhes aproveita mais a gestão curto-prazista de boca de caixa na execução orçamentária que o contingenciamento enseja.  

Agência Brasil:  Em um post no X (ex-Twitter), a senhora escreveu que “a desigualdade é uma escolha orçamentária.” Em uma live, a senhora disse que “existe uma forma clara de ordenar as prioridades no orçamento brasileiro para reproduzir e manter a desigualdade.” A meta de déficit zero em 2024 pode gerar aumento de desigualdade no país? Se sim, Como? 
Élida Graziane: A grande iniquidade do ciclo orçamentário brasileiro reside no fato de que a riqueza subtributada tem sido seguramente muito bem remunerada na dívida pública. Ora, os agentes superavitários da economia não pagam tributos conforme sua capacidade contributiva e se recusam a ser chamados a tal dever. Do outro lado dessa tensão, encontram-se agentes políticos pouco dispostos a alocar recursos mediante pactuações planejadas, porque almejam maximizar seus retornos de curto prazo eleitoral, manejando liberações balcanizadas de emendas parlamentares e benefícios tributários paroquiais.  

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Agência Brasil:  As áreas sociais podem perder recursos em 2024 com a meta de déficit zero? 
Élida Graziane: Sem equidade no regime jurídico das contas públicas, apenas as despesas primárias são alvo de ajuste. Assim, resta precarizada a própria qualidade dos serviços públicos essenciais e tem sido agravado o endividamento público, em um círculo vicioso de desigualdade social que se reproduz, sedimenta e invisibiliza por dentro do orçamento público. Cabe o alerta de que, se o planejamento ordena prioridades incomprimíveis, há de haver uma relação instrumental entre as receitas e esse tamanho constitucionalmente necessário do Estado. 

Agência Brasil: Na sua opinião, perseguir o déficit zero orçamentário ou mesmo superávit nas contas públicas não são pertinentes neste momento para o crescimento econômico? 
Élida Graziane: O equilíbrio nas contas públicas exige que se vá além da seletiva abordagem de ajuste adstrito às despesas primárias, como fez o teto dado pela Emenda Constitucional 95/2016 e como infelizmente parece se repetir agora com a Lei Complementar 200/2023. É preciso igualmente que se enfrente a iniquidade e a ineficiência na gestão das receitas e que se balize minimamente a repercussão opaca e ilimitada para a dívida pública das despesas financeiras, as quais revelam, entre outras dimensões, o impacto fiscal das decisões do Banco Central no âmbito das políticas monetária, creditícia e cambial. Responsabilidade fiscal e social conjugam-se quando efetivamente são reguladas e bem geridas as receitas governamentais, todas as despesas estatais (primárias e financeiras) e a dívida pública. 

Agência Brasil: A ata do Comitê de Política Monetária assinala, entre outros pontos, que “as incertezas sobre a estabilização da dívida pública têm o potencial de elevar a taxa de juros.” A meta de déficit zero não é positiva para a diminuição de juros e, portanto, melhores condições para investimentos das empresas e consumo das famílias – e com isso crescimento do PIB? 
Élida Graziane: Se só há o diagnóstico de risco fiscal no custeio intertemporal dos direitos fundamentais, esquecemo-nos de aprimorar as outras dimensões que também impactam a dívida pública. Não se pode falar em regime jurídico das finanças públicas apenas seletivamente contendo as despesas primárias e ignorando as iniquidades dos demais eixos. Eis a razão pela qual são oportunas e necessárias as reflexões sobre eventuais distorções na atuação do Banco Central.  

Certamente, haveria maior impessoalidade e equidistância do Banco Central em relação ao mercado financeiro, se houvesse regras mais robustas de quarentena prévia e posterior dos dirigentes com mandato fixo na autarquia. 

Embora seja claro que a principal finalidade do Banco Central é a gestão da estabilidade da moeda, sua atuação não pode ignorar que há objetivos complementares em seu regime legal de autonomia. Também devem ser suavizados os ciclos econômicos e deve-se, tanto quanto possível, buscar ampliar o nível de emprego na economia.  

Dada a sua significativa repercussão para a dívida pública, a política monetária precisa dialogar com a política fiscal, sob pena de se instalar uma polarização implícita entre estabilidade da moeda e custeio dos direitos fundamentais, que tende a comprometer, em regra, apenas esses últimos.

É igualmente relevante pontuar que a mensuração da sustentabilidade da trajetória da dívida pública está intimamente relacionada ao padrão de crescimento do PIB, até porque o parâmetro de monitoramento que adotamos é a relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o PIB, ou seja, numerador e denominador importam. 

Agência Brasil: Voltando às redes sociais, em uma delas a senhora apontou que “defender austeridade e apenas conter despesa primária é manter a riqueza subtributada segura e extremamente bem remunerada na dívida pública.” Na sua avaliação, o país deveria aumentar a tributação sobre os rendimentos dos títulos públicos? Isso não espantaria investidores? 
Élida Graziane: Para que nosso país volte a promover investimentos e consiga destravar a capacidade de implementar progressivamente os direitos fundamentais à luz da Constituição de 1988, é preciso que façamos a revisão das regras fiscais brasileiras a partir desse prisma ampliado entre receitas, despesas e dívida pública. De um lado, urge aprimorar a gestão das receitas, buscando torná-las mais progressivas e eficientes; revendo, por exemplo, as renúncias fiscais; enfrentando o estoque volumoso da dívida ativa, que não se arrecada como deveria etc. 

Há uma inegável disparidade nessa caótica e regressiva matriz tributária brasileira, onde se sobrecarrega a taxação incidente sobre a produção e o consumo ao invés de efetivamente tributar o patrimônio e a renda. Por outro lado, precisamos acompanhar, no mínimo pelo prisma dos princípios da motivação, transparência e proporcionalidade, o impacto causado pelas despesas financeiras sobre a dívida pública. A percepção assimétrica de riscos fiscais tem imposto rotas seletivas de ajuste apenas incidentes sobre despesas primárias, sendo iníquo tal arranjo normativo de regras fiscais, na medida em que, por vezes, promove uma inversão das prioridades constitucionais no ciclo orçamentário nos diversos entes da federação. 

Agência Brasil: O mecanismo do Estado de levantar recursos públicos por meio de títulos públicos não é melhor do que aumentar impostos ou emitir mais dinheiro? 
Élida Graziane: Gera insustentabilidade intertemporal da dívida a opção por financiar despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento mediante endividamento, quando o país, ao longo dos anos, inibe fortemente a arrecadação tributária, a exemplo do que se sucedeu com a expansão das renúncias fiscais e com a reiteração quase semestral de sucessivos programas de reparcelamento de débitos tributários (Refis), de onde se explica a baixa capacidade de arrecadação da dívida ativa e o risco moral de ostensiva fuga à tributação. Aqui, em especial, cabe um parêntese: a maior parte das renúncias fiscais é concedida sem previsão de adequado monitoramento das contrapartidas que as justificaram e com vigência por prazo indeterminado, o que dá ensejo a privilégios tributários perenes.  

Agência Brasil: A senhora também descreveu que o Brasil tem um “orçamento de castas”, com tributação regressiva, renúncia fiscal e sonegação fiscal premiada pelas diversas edições do Refis. O que espera da reforma tributária? 
Élida Graziane:

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O Brasil tem esse profundo desequilíbrio em relação a quem paga e a quem se omite de pagar a conta da vida em sociedade, mesmo quando possui maior capacidade contributiva.

A regressividade tributária é, de certa forma, o outro lado da moeda do elevado custo de carregamento da dívida pública, na medida em que a liquidez subtributada dos agentes privados superavitários tem sido muito bem remunerada na dívida pública. Esse me parece ser um dos mais destacados impasses das nossas finanças públicas, o qual acaba por constranger a eficácia dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988.  

Agência Brasil: Por fim, uma última frase da senhora: “a democracia só se torna real se a gente conseguir impactar o orçamento em todas as suas concepções.” A celeuma em torno do déficit zero é sinal de que estamos nesse caminho ou o contrário? 
Élida Graziane: Vivemos sob uma disputa balcanizada e irracional, a todo tempo, pelos recursos escassos, sem que seja cumprido sequer o basilar do conjunto de despesas já definidas como programas de duração continuada do PPA e como despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento na LDO. As filas de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, os passivos judicializados, os restos a pagar e as omissões regulamentares são exemplos de preterição na ordenação legítima de prioridades feita pelo PPA e pela LDO.  

É preciso devolver para a sociedade com mais clareza essa construção pedagógica do que se espera que o Estado entregue ao longo do tempo, até para que não se acumulem tantos passivos judicializados, tanta precarização de serviços públicos essenciais e tanta inefetividade dos direitos fundamentais. 

Fonte: EBC Economia

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Lucas do Rio Verde

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