O Ministério Público do Trabalho (MPT) processou a Volkswagen do Brasil por trabalho escravo em uma fazenda da empresa, no município de Santana do Araguaia, no Pará, durante as décadas de 1970 e 1980.
Na ação civil pública, o MPT pede que a empresa assuma a responsabilidade pelos casos e pague R$ 165 milhões por danos morais coletivos, além de fazer um pedido público de desculpas e implementar medidas de combate ao trabalho escravo, tráfico de pessoas e demais violações dos direitos humanos.
As investigações começaram depois que o MPT recebeu, em 2019, uma documentação impressa, reunida pelo padre Ricardo Rezende Figueira, que, à época, era coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para a região do Araguaia e Tocantins da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
No documento, ele denunciava diversas situações em que trabalhadores eram submetidos a condições degradantes de trabalho na propriedade Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda Volkswagen.
De acordo com depoimentos de vítimas, relatórios de investigações e documentos públicos, essas violações incluíam falta de tratamento médico nos casos de malária, impedimento de saída da fazenda, em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas — servidão por dívidas —, e alojamentos instalados em locais insalubres, sem acesso à água potável e com alimentação precária.
A Fazenda Vale do Rio Cristalino pertencia à Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), uma subsidiária da Volkswagen à época, e tinha cerca de 140 mil hectares, o equivalente à área da cidade de São Paulo.
Nos anos dos fatos, a empresa contou com recursos públicos e benefícios fiscais da ditadura militar, que ajudaram a alavancar o negócio de criação de gado. A Volkswagen, então, se tornou um dos maiores polos do setor. Para o MPT, isso acentua a necessidade de reparação à sociedade brasileira.
“Após apurar os fatos, o MPT fez cinco audiências com representantes da empresa entre 2022 e 2023 para discutir a reparação da empresa pelos casos e a assinatura de um termo de ajuste de conduta (TAC). A Volkswagen do Brasil se retirou da mesa de negociação em março de 2023 e demonstrou não ter interesse em firmar o acordo com o MPT”, afirma o órgão.
Escravização por dívida
Segundo os autos do processo, entre 1974 e 1986, a empresa recrutava trabalhadores em regiões distantes e com baixo desenvolvimento econômico por meio de empreiteiros, conhecidos como “gatos”, que prometiam falsos salários em valores superiores ao que realmente seriam pagos. Ao chegar à fazenda, as condições de trabalho eram precárias, e os salários eram reduzidos sem consentimento.
Na fazenda, os trabalhadores eram obrigados a comprar produtos na cantina a preços exorbitantes, e a dívida interna passava a ser descontada do salário. Quem tivesse algum tipo de conta a pagar à empresa era proibido de deixar a propriedade.
Segundo o documento do MPT, diversos artifícios eram usados para aumentar a dívida dos trabalhadores, como redução salarial, contabilização incorreta do trabalho realizado, fraude no valor das mercadorias e adulteração de cálculos. Os trabalhadores também eram cobrados por despesas de viagem, hospedagem, alimentação, ferramentas de trabalho, utensílios domésticos e medicamentos.
Ainda era dito aos trabalhadores que um “abono” era dado às famílias dos trabalhadores, o que aumentava ainda mais a dívida que os obrigava a permanecer na fazenda.
Tortura
Além da escravização por dívida, a entrada e saída da fazenda eram controladas por seguranças armados, que revistavam os trabalhadores e confiscavam os pertences. Os funcionários que tentavam fugir eram perseguidos, capturados e, em alguns casos, amarrados e espancados.
Segundo relatos de testemunhas e vítimas, havia casos de tortura, assassinato e desaparecimento de trabalhadores para além de ameaças e agressões caso não trabalhassem ou se o trabalho fosse considerado malfeito.
Condições de trabalho degradantes
O documento ainda detalha que os trabalhadores viviam em barracos precários, sem paredes e expostos ao mau tempo, animais selvagens e peçonhentos. A falta de saneamento básico e higiene era frequente, e os funcionários utilizavam água de córregos contaminados para beber, cozinhar e se lavar.
Eles eram submetidos, principalmente, a atividades de roçagem e derrubada da mata amazônica para a formação de pastos e exploração de madeira, mas também obrigados a realizar outras tarefas, como construir alojamentos, cozinhar, realizar tarefas domésticas e, até mesmo, matar onças.
Por causa das más condição, a maioria dos trabalhadores contraiu malária e muitos sofriam acidentes de trabalho sem receber a assistência médica adequada.
Responsabilidade da Volkswagen
O Ministério Público do Trabalho, após analisar as provas, concluiu que a Volkswagen do Brasil é responsável pelas violações de direitos humanos ocorridas na Fazenda Vale do Rio Cristalino porque a empresa se beneficiou diretamente do trabalho escravo e do tráfico de pessoas na fazenda.
De acordo com o MPT, a responsabilidade da Volkswagen se configura pelos seguintes motivos:
Controle das atividades: a empresa definia as áreas de trabalho, fiscalizava os serviços, aprovava os pagamentos aos “gatos” (empreiteiros) e controlava a entrada e saída de pessoas da fazenda. A empresa também exigia que os “gatos” mantivessem um livro de ocorrências, que era periodicamente conferido e assinado por um fiscal da Volkswagen, demonstrando que a empresa tinha conhecimento das atividades realizadas na fazenda;
Conhecimento dos abusos: segundo relato de trabalhadores, a gerência da fazenda sabia das condições degradantes de trabalho e da escravidão por dívida. Relatórios de visitas e entrevistas com diretores da CVRC, subsidiária da Volkswagen que era proprietária da fazenda, também expuseram o envolvimento da empresa nos abusos;
Benefício econômico: a Volkswagen lucrou com a exploração do trabalho escravo, utilizando mão de obra barata para a formação de pastos e extração de madeira na fazenda, um dos maiores empreendimentos rurais da região amazônica na época. A fazenda foi instalada em Santana do Araguaia, no Pará, e recebeu subsídios do governo militar por meio da SUDAM e do BASA;
Omissão e encobrimento: a empresa se omitiu diante das denúncias, negando os fatos e tentando encobrir sua responsabilidade. A empresa se recusou a firmar um acordo com o MPT para reparar os danos causados aos trabalhadores e alegou a prescrição dos crimes para se eximir de responsabilidade;
Responsabilidade pela subsidiária: A Volkswagen era a controladora da CVRC e, portanto, responsável pelas ações da subsidiária.
Durante a investigação, a Volkswagen do Brasil negou o conhecimento dos abusos ocorridos entre 1974 e 1986 e alegou que os abusos eram de responsabilidade exclusiva dos empreiteiros (“gatos”) contratados para recrutar e gerenciar os trabalhadores.
A empresa ainda se baseou em argumentos técnicos para tentar se eximir de responsabilidade, como a impossibilidade de resgatar documentos antigos e a prescrição dos crimes.
Segundo o procurador do Trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações, o MPT promoveu profunda e exaustiva análise sobre os fatos ocorridos na Fazenda Volkswagen nas décadas de 1970 e 1980.
“Os documentos e depoimentos obtidos pela instituição comprovaram as gravíssimas violações aos direitos humanos na fazenda naquele período. Foi constatada a submissão dos trabalhadores à condição semelhante à escravidão por meio de jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida”, destacou o procurador.
A ação civil pública foi elaborada por grupo integrado pelas procuradoras e procuradores do Trabalho Christiane Vieira Nogueira, Rafael Garcia Rodrigues, Silvia Silva da Silva e Ulisses Dias de Carvalho.
O que diz o outro lado
Ao Metrópoles a Volkswagen do Brasil “informa que ainda não foi formalmente notificada, razão pela qual não teve acesso ao teor da ação iniciada pelo Ministério Público Federal do Trabalho, e não comenta processos em andamento”.